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A evolução das aves é um tópico fascinante na biologia. De acordo com as evidências fósseis, as aves evoluíram a partir de um grupo de dinossauros, no período Jurássico, entre 150 a 200 milhões de anos atrás. Mesmo após a extinção dos dinossauros, as aves continuaram a evoluir. Sua capacidade de adaptação nos mais diversos ambientes ecológicos possibilitou que hoje as aves constituam um grupo diversificado e bem-sucedido de vertebrados, com mais de 10.000 espécies reconhecidas em todo o planeta.
Nesse longo caminho, de milhões de anos, alguns fatos são comuns a todas as espécies: elas sempre necessitaram de cuidados parentais e, receberam, como herança, a microbiota de seus progenitores, através do ovo e das fezes deixadas nos ninhos. Entretanto, na moderna indústria avícola, em que bilhões de aves e ovos são produzidos anualmente para o consumo humano, as aves não somente nascem, mas também são criadas totalmente isoladas de suas mães, por diversas razões, dentre elas, motivos técnico-econômicos e sanitários.
Período perinatal: da bicagem da membrana interna da casca do ovo aos primeiros dias de vida
Na produção avícola industrial, sem nenhum contato físico com seus progenitores, o pintinho recém-eclodido não recebe como herança sua carga de microbiota protetora de seu trato gastrointestinal (TG), de suas mucosas e de sua pele. Isso o torna um alvo mais fácil para as infecções por microrganismos oportunistas ou patogênicos, sobretudo pelas vias umbilical, digestiva e respiratória. Exatamente por esse motivo, nos últimos 60 anos, a indústria avícola se valeu dos antimicrobianos (AMC), utilizados largamente de forma preventiva e curativa, para contornar e controlar esse e outros desafios e enfermidades.
Saúde única e Era pós-antibiótico na produção animal
O conceito de “Saúde Única” consiste numa abordagem interdisciplinar – desenvolvida por uma aliança quadripartite de organismos internacionais: FAO, OMS, OMSA e ONU – que reconhece a interconexão entre a saúde humana, a saúde animal e a saúde do ecossistema. Essa abordagem foi desenvolvida para lidar com questões de saúde de forma holística, considerando o impacto das doenças em humanos, nos animais e no meio ambiente.
O uso de AMC na produção animal tem levado, cada vez mais, ao surgimento de bactérias resistentes, o que representa um significativo risco à saúde humana. Essas preocupações resultaram na promulgação de leis pelas autoridades nos diferentes países, limitando o uso de AMC em animais e assim impulsionando a necessidade da indústria avícola de encontrar estratégias alternativas para o controle e tratamento de infecções bacterianas.
Sem dúvida, a colonização precoce do trato gastrointestinal das aves é uma das estratégias que apresentam melhor retorno econômico do seu investimento.
Princípio de Nurmi
Desenvolvido pelo cientista finlandês Olli Nurmi, é fundamentado na premissa de que a microbiota benéfica que habita o trato gastrointestinal (TG) das aves adultas pode competir com as salmonelas patogênicas, desempenhando um papel crucial na prevenção da colonização e das infecções. Este conceito foi pioneiramente explorado por Nurmi e Rantala em 1973, ao descreverem o mecanismo conhecido como “exclusão competitiva” (EC) como uma ferramenta eficaz no controle da salmonela. Suas pesquisas evidenciaram que a colonização inicial do TG das aves jovens, com bactérias provenientes de aves adultas, poderia protegê-las contra a colonização subsequente por Salmonella.
Essa estratégia, hoje inserida na avicultura industrial, tem como objetivo salvaguardar as aves de produção, de qualquer idade, contra bactérias patogênicas que possuem capacidade de colonizar o TG das aves e, eventualmente, invadir a corrente circulatória, desencadeando doenças sistêmicas. Por esse motivo, essas bactérias podem representar uma ameaça à saúde humana quando produtos avícolas contaminados, como carne e ovos, são consumidos.
Existem várias estratégias comuns para implementar o Princípio de Nurmi, incluindo:
- Administração de culturas probióticas (NAGF, DFM), que inclui a introdução de culturas de bactérias benéficas (probióticos) na dieta das aves, promovendo o crescimento dessas bactérias no TG.
- Utilização de ingredientes na ração que estimulam o crescimento de bactérias benéficas, como os ácidos orgânicos, prebióticos (FOS e MOS), óleos essenciais e extratos vegetais.
- Redução do uso de antimicrobianos, principalmente de forma preventiva, pois essas drogas, utilizadas de forma periódica ou contínua, afetam negativamente a microbiota intestinal, promovendo a disbiose, além de elicitar o desenvolvimento de bactérias resistentes.
- Biosseguridade e boas práticas de manejo e higiene, que são princípios e processos fundamentais para diminuir o risco de infecções.
Por que modular a microbiota ainda no incubatório?
Cada vez mais, as pesquisas e provas de campo mostram que microbiota do TG exerce uma função fundamental, não somente neste sistema, mas também no sistema imune, respiratório, nervoso e tegumentar, o que resulta em benefícios significativos em termos de nutrição, metabolismo, fisiologia, imunidade, saúde e bem-estar. Esta complexa comunidade de microrganismos, predominantemente compostos por bactérias, evolui, se desenvolve, se adapta e coloniza o intestino das aves, desempenhando um papel fundamental na manutenção da integridade intestinal. Seus efeitos, no TG, se traduzem em:
A microbiota, entretanto, não permanece estática. Antes mesmo do nascimento do pintinho, ela já está presente, mas se encontra ainda em uma fase rudimentar, e, ao longo de todo o ciclo de vida das aves, fatores ambientais diversos influenciam sua composição e equilíbrio. As bactérias benéficas estão constantemente em competição com aquelas que podem representar uma ameaça à integridade intestinal. O termo-chave aqui é “equilíbrio”, ou eubiose.
Bactérias potencialmente patogênicas podem estar associadas às aves reprodutoras, ao processo de incubação dos ovos, à cama das aves, às instalações de criação, à ração e à água. Esses fatores, combinados com uma microbiota intestinal rudimentar ao nascimento, tornam os pintinhos extremamente vulneráveis à infecção por bactérias patogênicas durante os primeiros dias de vida. Portanto, a colonização intestinal precoce desempenha um papel crucial no desenvolvimento inicial das aves, no período perinatal.
A aplicação de probióticos com múltiplas cepas láticas ou de exclusão competitiva, ao nascimento, contribui para a formação de uma microbiota benéfica e reforça a proteção contra bactérias patogênicas. No entanto, para garantir a eficácia do produto, é essencial aplicá-lo corretamente.
Como realizar uma aplicação eficaz de probióticos no incubatório
Atualmente, existem duas maneiras de realizar a colonização precoce das aves: através da aplicação do probiótico dentro do ovo entre o 18º e 19º dia de incubação ou por meio de pulverização (spray) imediatamente após o nascimento.
O processo de vacinação in ovo geralmente ocorre durante a transferência dos ovos da incubadora para o nascedouro. No mercado, há diversos tipos e modelos de equipamentos para realizar a vacinação in ovo. De uma maneira prática, todos eles perfuram a casca dos ovos para introduzir a solução vacinal, e, em alguns casos, é possível adicionar nutrientes e probióticos.
Um ponto crítico a ser observado é o momento da aplicação. Como a colonização pelo probiótico é um processo entérico, o pintinho deve ingerir o produto através do líquido amniótico e/ou albúmen e em quantidade suficiente. Isso só ocorre quando a aplicação é realizada entre 18 dias e 12 horas e 18 dias e 22 horas. Vale ressaltar que o tempo cronológico nem sempre coincide com o tempo biológico e fisiológico das aves, e cada ave pode ter seu próprio ritmo, portanto a janela de aplicação é curta e requer atenção constante.
Quanto à aplicação via spray, as vacinas e probióticos podem ser administrados simultaneamente por meio de uma máquina de pulverização. Esse processo é relativamente simples e fácil de executar, mas demanda cuidados especiais para garantir uma colonização precoce eficaz. Para cada caixa contendo 100 pintinhos, o volume aplicado deve variar entre 15 e 21 mL da solução vacinal/probiótica. Importante aplicar a solução via spray gota grossa (cerca de 200 micras) observando que a distribuição seja uniforme e contemple toda a superfície da caixa. A adição de corantes também desperta o interesse das aves, promovendo o consumo das gotas com probióticos, e facilita a avaliação da qualidade da aplicação. Aproximadamente 95% dos pintinhos devem apresentar a língua corada, indicando que ingeriram a solução aplicada.
Portanto a aplicação mais eficaz do probiótico em spray, no incubatório, é aquela que permita equilibrar os seguintes pontos:
Considerações finais
A produção avícola é um dos setores com um dos melhores índices de eficiência na conversão de grãos em alimentos de alto valor biológico, de menor pegada de carbono e de água. Manter uma elevada eficiência alimentar é essencial para o setor avícola atender à crescente demanda de proteína animal, ao mesmo tempo que representa também um grande desafio, uma vez que a produção intensiva de aves pode ser afetada por doenças infecciosas, algumas de caráter zoonótico. Se a microbiota intestinal é crucial para a saúde das aves, por sua vez a colonização precoce torna-se um dos principais pontos de partida para uma produção avícola sustentável.

Autor: Paulo Martins
Diretor Técnico – Biocamp